Fernanda Monteiro

exposições:

K. Liames: Entre livros de artista, objetos e páginas soltas. Adriana Dias

                         Observando o trabalho de Adriana Dias podemos perceber na sutileza do traço, na escolha dos materiais, nas sobreposições, seu interesse pelo evanescente, pela fluidez, que se revela paulatinamente em suas composições lineares e translúcidas. Há por traz de sua figuração um conteúdo simbólico forte, que se apresenta através de uma narrativa polissêmica, composta por diversas camadas de significação, às quais adentramos lentamente inebriados e encantados por traços delicados que nos conduzem por caminhos que se adensam na medida em que avançamos na leitura destas narrativas visuais.

                         Ao adentrar na atmosfera, somos convidados a compartilhar com a artista uma série de signos presentes em uma memória construída por imagens de grande força afetiva, que se desvelam gradativamente e vão se ligando umas as outras sem que haja necessariamente uma sequência lógica. Estão livres no espaço, pairando sobre folhas transparentes como vestígios de uma história a ser escrita pelo observador. Não há um arranjo fixo, mas possibilidades de se vivenciar e de se apropriar de delicadas imagens cotidianas, detalhes com grande potencialidade simbólica.

                         Há uma necessidade descrita pela artista de deslocar-se, materializada  pelos mitos de Atlas, figura mitológica que carrega o mundo nas costas, e Sísifo, personagem humano fadado ao trabalho entrópico de empurrar ladeira acima uma pedra de peso superior as suas forças. As duas imagens partem de autorretratos da artista e do desejo de adentrar e redescobrir os abismos por ela desenhados alguns anos antes, espaços densamente fechados por traços repetidos de forma veemente que formam massas escuras, aparentemente impenetráveis em meio a fendas claras, que ofuscam a visão. Existe um paradoxo entre o desejo e a necessidade, reforçado pelo autocontraste das imagens do abismo, onde o escuro instiga e o claro ofusca e repele. Não sabemos o que guardam as fendas ou o que se oculta nas sombras, apenas temos a consciência da existência para além da superfície do papel.

Interessante pensar na materialidade dos fios presentes como costura ou parte de objetos que compõem o corpo de obras apresentado.  Os fios podem ao mesmo tempo prender ou acorrentar, como também podem ligar, sustentar, criar vínculos que impedem que se perca no abismo. Simultaneamente podem restringir o movimento e evitar quedas, subsistindo uma dualidade de pensamentos, que se reverbera quando refletimos sobre os opostos preto e branco, pensados como contrastes de luz e sombra, claro e escuro, obscuridade ou incerteza em contraposição à esperança. Neste jogo de densidades, a bruma também pode apresentar-se incerta, aproximando-se metaforicamente do abismo quando pensamos no branco como ausência.

Neste jogo de combinações, aparecem folhas soltas, a experiência das combinações quase aleatórias, casuais, experimentadas em grande escala na intervenção na Praça Frei Baraúna, ocorrida em 2014. Há um jogo de aproximação e distanciamento. O livro permitia um tomar para si, uma aproximação mais estreita e controlada. Os tecidos diáfanos pendurados na seringueira da praça parecem insubordinados, juntando-se e separando-se ao sabor do vento, sem qualquer comprometimento prévio. Livres, embora içados, também foram apropriados pelos pensamentos dos passantes e pela própria ação dos furtos, que deram a eles caminhos impensados ou imprevistos pela artista, materializando o ato de liberdade que tanto buscava com as asas, o sopro, o flotar das bolhas, a brisa do acaso.

Concordo com Borges quando diz que um livro jamais será o mesmo, pois cada vez somos outro.

 

Fernanda Monteiro